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Brasil se despede de Clara Charf, viúva de Marighella — Brasil de Fato

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Clara Charf, uma das mais longevas e emblemáticas militantes da esquerda brasileira, faleceu nesta segunda-feira (3), aos 100 anos. Viúva do guerrilheiro Carlos Marighella, ela dedicou a vida em defesa da democracia, da liberdade e da igualdade entre homens e mulheres. 

Nascida em Maceió em 1925 e criada no Recife, Clara foi filha de judeus russos que fugiram do antissemitismo na Europa, entrou cedo no Partido Comunista Brasileiro (PCB). Companheira de Carlos Marighella, viveu ao lado dele os anos de clandestinidade e perseguição durante a ditadura militar. 

Após o assassinato do marido em 1969, exilou-se em Cuba, onde permaneceu por quase uma década. De volta ao Brasil com a anistia, ajudou a fundar o Partido dos Trabalhadores (PT) e a Associação Mulheres pela Paz, mantendo-se ativa até o fim da vida na defesa dos direitos humanos, das mulheres e dos trabalhadores.

Para o ex-ministro dos Direitos Humanos Paulo Vannuchi, Clara foi “uma militante incansável, destemida e coerente”, disse. “Ela lutou pela democracia e pelo socialismo em condições duríssimas de clandestinidade. Foi companheira de Marighella na resistência e uma das fundadoras do PT, com grande dedicação às causas das mulheres e à solidariedade internacionalista”, destacou.

“Clara era uma mãezona. Do tipo que acolhe, que cuida, que abraça, mas também que orienta, que puxa pela coragem”, lembra o jornalista Paulo Cannabrava, que foi amigo de Clara por muitos anos e conviveu com Marighella.

Em publicação nas redes sociais, o presidente Lula lamentou a morte da ativista e ressaltou o olhar de Clara sobre a forma de viver. 

Na plataforma X, o PT salientou a coragem de Clara Charf.

O início da luta pela democracia

Nascida em 1925, em Maceió (AL), Clara era a mais velha de três irmãos e filha de um casal de judeus russos que fugira da perseguição antissemita no Leste Europeu. O pai, Gdal, trabalhava como mascate, e a mãe, Ester, cuidava da casa e dos filhos. Quando Clara ainda era pequena, a família se mudou para o Recife, onde a comunidade judaica já se estabelecia. Foi lá que sua mãe morreu de tuberculose, aos 40 anos.

Cresceu em um ambiente de efervescência política, no pós-Segunda Guerra Mundial, quando o entusiasmo com a vitória da União Soviética sobre o nazismo impulsionava a militância comunista no Brasil. Ainda jovem, Clara conheceu pessoas que haviam sido presas durante o Estado Novo e começou a se aproximar do movimento operário.

Em 1945, Clara participou de protestos contra a bomba atômica durante a Guerra Fria e de diversos congressos em prol da paz. Já em 1950, lutou contra o envio de soldados brasileiros para a Guerra da Coréia.

Marighella e a ALN

Aos 21 anos, Clara filiou-se ao PCB, contra a vontade do pai, que não acreditava na democracia nem na militância da filha. Por saber inglês e datilografia, trabalhou na base naval estadunidense no Recife e, depois, mudou-se para o Rio de Janeiro, em 1946, sonhando ser piloto de avião.

A documentarista Isa Grinspum Ferraz, autora do premiado documentário Marighella (2012), sobre o tio guerrilheiro, se recorda com carinho da tia. “Foi uma mulher muito à frente de seu tempo. Desde menina, queria ser aviadora para poder voar. Queria liberdade e igualdade para todos e todas, e a essas causas dedicou toda a sua longa e profícua vida.” 

Como não havia mulheres pilotando aviões, tornou-se aeromoça da Aerovias Brasil, onde passou a transportar documentos e mensagens para o partido.

Foi nesse período que conheceu Carlos Marighella, então deputado e um dos principais líderes comunistas. Os dois começaram a trabalhar juntos na Câmara dos Deputados, em atividades políticas e administrativas. Em 1948, os dois foram morar no Rio de Janeiro e, no ano seguinte, mudaram-se para São Paulo, após a cassação dos mandatos do PCB. Lá, Clara coordenou o Movimento Feminino Paulista do partido, enquanto Marighella atuava como primeiro-secretário regional.

Carlos Marighella, Clara Charf e família | Arquivo Pessoal

A vida na clandestinidade era intensa. Em 1952, durante uma missão partidária, Clara foi presa em Campinas, acusada falsamente de espionagem internacional. Libertada meses depois, retomou as atividades políticas ao lado de Marighella.

Após o golpe militar de 1964, entrou novamente na clandestinidade. Em 1967 entrou para a Aliança Libertadora Nacional (ALN) com o companheiro que mais tarde seria assassinado numa emboscada do Departamento de Ordem Política e Social (Dops), em 4 de novembro de 1969.

Nas redes sociais, o teólogo e escritor Frei Betto lembrou o simbolismo de sua partida, ocorrida na véspera do aniversário da morte de Marighella. “É como se o tempo a tivesse esperado para que ambos se reencontrassem além da ausência. Clara viveu a história por dentro, mas sem buscar o palco. Fez da lembrança um ato político e da ternura uma forma de resistência.”

“Ela não empunhou fuzis, mas manteve viva a chama das utopias. Morreu centenária, vitoriosa, com o mesmo olhar sereno de quem nunca deixou de acreditar que o mundo pode ser melhor”, completou Frei Betto.

Até o final, apesar da idade e de limitações físicas, Clara viajou incansavelmente pelo Brasil conversando com mulheres sobre seus direitos, afirma Isa. “Clara pensava que um outro Brasil é possível, e durante toda a sua vida atuou para transformá-lo, abrindo mão de regalias e confortos pessoais. Atuava com doçura e energia, amava e respeitava as pessoas e não aceitava as desigualdades que ferem e dividem o Brasil.”

Clara era uma mulher forte, sorridente e dura, quando necessário, lembra Isa. “Era hábil politicamente e teve a clareza de estar em diálogo permanente com a realidade de seu tempo, redirecionando sua atuação política, quando necessário.” 

Exílio e ativismo no Brasil

Após o assassinato de Marighella, Clara exilou-se em Cuba. Trabalhou como tradutora e participou de ações voluntárias no campo. Retornou ao Brasil em 1979, com a Lei da Anistia, ajudando a fundar o Partido dos Trabalhadores (PT), pelo qual se candidatou a deputada estadual em 1982.

Aos 80 anos, participava da Comissão de Mortos e Desaparecidos Políticos e integrava a Secretaria de Relações Internacionais do PT, onde também atuou no Conselho Nacional dos Direitos da Mulher, vinculado à Secretaria Especial de Políticas para as Mulheres da Presidência da República.

Protagonista nas lutas feministas e pacifistas, em 2003, fundou a Associação Mulheres pela Paz, movimento que articula mulheres em defesa da justiça social, dos direitos humanos e da não violência, e que se destacou pela campanha “1000 Mulheres para o Prêmio Nobel da Paz”. “Clara foi uma guerreira incansável. Mesmo centenária, seguia inspirando a luta pelas mulheres e pela igualdade”, afirmou Vera Vieira, diretora-executiva da associação.

O trabalho na associação lhe rendeu reconhecimento internacional: Clara foi uma das mil mulheres de todo o mundo indicadas coletivamente ao Prêmio Nobel da Paz em 2005. “O fato de ter sido indicada ao Nobel da Paz junto a outras mulheres é uma prova de que sua ação ultrapassou fronteiras”, conta Cannabrava.

O jornalista afirma ainda que Clara inspira gerações atuais. “Ela acreditava que a paz verdadeira só se constrói com justiça social, e é essa visão que inspira gerações até hoje. Ela deixa como herança o compromisso com a memória, com a verdade histórica e com o protagonismo das mulheres na transformação do mundo”, diz.

São Paulo 04/11/2015 - Clara Charf durante ato na Alameda Casa Branca, local onde Marighella foi assassinado.
São Paulo 04/11/2015 – Clara Charf durante ato na Alameda Casa Branca, local onde Marighella foi assassinado | Rovena Rosa/Agência Brasil

João Pedro Stédile, coordenador do Movimento dos Trabalhadores e Trabalhadoras Sem Terra (MST) também ressalta o legado de Clara. “Ela viveu cem anos lutando pelos direitos dos trabalhadores, das mulheres e pela construção de um país mais justo. Sua vida se confunde com a própria história política do Brasil.” 

Cannabrava destaca que, mesmo muito doce, Clara era uma mulher de convicções firmes. “Não é fácil ser companheira de um combatente como Carlos Marighella. Eles formavam uma dupla de luta, de sonho e de enfrentamento. E não é fácil, tampouco, viver na clandestinidade, longe de casa, da rotina, com medo constante de uma batida ou de uma prisão. Ela enfrentou tudo isso com altivez e solidariedade.”

Mesmo nos anos mais duros do exílio, Clara manteve a dignidade e o senso de missão, diz ele. “Mais do que uma militante, ela era aquela que dava estrutura emocional ao entorno. Era uma mulher que cuidava das pessoas ao seu redor, mas também puxava todas e todos para a luta.” 

Os inúmeros momentos marcantes desta longa jornada ficarão eternizados no Instituto Carlos Marighella e Clara Charf, que está em fase de implantação, informa a documentarista Isa Grinspun. O objetivo será “reunir, preservar, documentar e pesquisar toda essa história, tão importante para o país, amigos e companheiros”. 

Figura presente em manifestações, congressos e campanhas até os últimos anos de vida, Clara Charf manteve o vigor da militância até o fim. “Clara foi grande. Do tamanho dos seus 100 anos. Uma vida com tamanha luminosidade não se apaga”, disse Fernanda Pompeu, também da Associação Mulheres pela Paz.

Clara Charf morreu de causas naturais, após alguns dias de internação. O velório ocorre nesta segunda-feira (3), das 18h às 21h, no Velório do Cemitério São Paulo. Em seguida, o corpo sairá em direção ao Crematório da Vila Alpina.

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